Artigos e Estudos sobre Corporate Governance

As regras não podem substituir o carácter

Alan Greenspan admite que a corporate governance saiu afectada, mas não profundamente, dos últimos escândalos ligados à"contabilidade criativa". Mas nem tudo está perdido e o presidente da FED mostra-se confiante em que melhores dias virão. Mas, de qualquer das formas, "as regras não podem substituir o carácter", alertou.

Greenspan

»»"A corporate governance evoluiu ao longo do último século de forma a promover mais eficazmente a atribuição das poupanças da nação para as suas utilizações mais produtivas". Foi com estas palavras que Alan Greenspan, presidente da Reserva Federal, iniciou o seu discurso sobre corporate governance na Stern School of Business, na Universidade de Nova Iorque, no dia 26 de Março último. Para este responsável governamental, aquela estrutura tem servido bem o país."Não poderíamos ter alcançado o nosso actual nível de produtividade nacional se a corporate governance tivesse falhas graves", sublinhou.

E, no entanto, as recentes experiências vividas com a falência da Enron e outros incidentes de menor dimensão sugerem que "a governance das nossas organizações se desviou das nossas percepções sobre a forma como ela deveria funcionar". Por lei, conforme salientou Greenspan, "os accionistas são os donos das empresas e, idealmente, os gestores deveriam estar a trabalhar em benefício dos accionistas para atribuir os recursos da organização à sua utilização óptima".

Mas, com a expansão da economia e o crescimento das unidades de negócio, o controlo real por parte dos accionistas diminuiu, resultando na dispersão da propriedade."Poucos accionistas têm participações suficientemente importantes para influenciar individualmente a escolha de conselhos de administração ou de CEOs", comentou Greenspan. Até porque a vasta maioria dos accionistas visa o investimento e não alcançar o controlo das empresas, conforme sublinhou o presidente da Reserva Federal.

"Poucos accionistas têm participações suficientemente importantes para influenciar individualmente a escolha
de conselhos de administração ou de CEOs"

É assim que, cada vez mais, a responsabilidade de guiar a empresa tem repousado crescentemente "na alçada dos responsáveis empresariais, especialmente do CEO, com esperança de que esta vá na direcção dos melhores interesses dos accionistas", sublinhou."De facto", prosseguiu, "os conselhos de administração nomeados pelos accionistas são, na esmagadora maioria dos casos, escolhidos da lista de candidatos proposta pelo CEO. O CEO estabelece a estratégia de negócio da organização e influencia fortemente a escolha das práticas contabilísticas que medem o grau de sucesso ou fracasso dessa estratégia. Os auditores externos são geralmente escolhidos pelo CEO ou por um comité fiscal de directores escolhidos pelo CEO. Os accionistas normalmente aprovam tais escolhas com indiferença".

Análises não credíveis não têm valor de mercado
Enquanto a empresa não se encontra, manifestamente, em dificuldades, o CEO pode manter o controlo da corporate governance. O problema é quando as empresas se deparam com problemas. Aí, "a carta branca conferida aos CEOs pelos accionistas é retirada", salientou Greenspan."É então que os accionistas existentes, ou os triunfantes compradores hostis da empresa, normalmente substituem o conselho de administração e o CEO".

Um paradigma que, em geral, tem funcionado bem."Temos sorte, pois os mercados financeiros não têm tido qualquer alternativa realista senão depender do CEO para garantir uma avaliação objectiva das perspectivas da empresa", aventou Greenspan. De facto, para além de alguns investidores institucionais de grande dimensão, não serão muitos os accionistas com a capacidade de analisar os relatórios das empresas e, assim, avaliar o investimento numa empresa."Este serviço de importância vital tornou-se dominado por empresas no negócio da subscrição ou venda de títulos", afirmou.

Mas, como se pode depreender da história recente, "as previsões de lucros a longo prazo dos analistas de títulos das corretoras têm sido, em média, persistentemente optimistas em excesso". As estimativas a três e cinco anos para cada uma das empresas presentes no índice S&P500, compiladas pela I/B/E/S a partir das projecções de analistas financeiros para os anos entre 1985 e 2001, apontavam para um crescimento médio de lucros de quase 12 por cento ao ano, enquanto o crescimento efectivamente verificado ficou-se pelos sete por cento.

Segundo Greenspan, é possível que "os últimos 16 anos, relativamente aos quais foram sistematicamente disponibilizados dados, sejam uma aberração histórica". Mas, ainda segundo o presidente da FED, a persistência do desvio ano após ano indica que a razão reside, pelo menos parcialmente, "na propensão das empresas que vendem títulos para reter e promover analistas com inclinações optimistas". Ainda por cima, o desvio tem aparentemente sido maior quando a corretora que emite a previsão também actua como subscritora dos títulos da empresa.

"As sociedades de investimento têm perfeita consciência de que a análise de títulos sem credibilidade não tem qualquer valor de mercado"

Segundo o presidente da Reserva Federal, o desempenho dos analistas "poderá melhorar em resultado da recente iniciativa conjunta da National Association of Securities Dealers e do New York Stock Exchange, que exige que as corretoras incluam nas suas análises a distribuição dos ratings das empresas, entre 'comprar', 'vender' e 'manter', por exemplo". Greenspan está confiante em como esta diferença entre as previsões dos analistas e os resultados efectivos irá diminuir rapidamente "porque as sociedades de investimento têm perfeita consciência de que a análise de títulos sem credibilidade não tem qualquer valor de mercado".

A ditadura dos lucros
Há algumas décadas, as previsões de lucros não eram nem de longe um factor tão importante na avaliação do valor das empresas."Não me lembro que os rácios preço/lucro (PER) fossem uma estatística proeminente nos anos 50", comentou Greenspan."Ao invés, os investidores tendiam a valorizar as acções com base nos rendimentos dos seus dividendos". No entanto, desde o início dos anos 80, as empresas têm distribuído dinheiro pelos accionistas cada vez mais sob a forma de recompra de acções em lugar de dividendos, nomeadamente por motivos fiscais, dado que, a partir de 1982, a SEC passou a permitir que as empresas encetassem recompras de acções sem temerem uma investigação por parte da autoridade regulamentadora."Mais recentemente, um desejo de gerir a diluição da estrutura accionista contra a crescente incidência de stock options conferidas aos empregados também impulsionou as recompras", salientou.

Como consequência, os rácios de distribuição de dividendos, "que em décadas passadas apresentavam uma média de 55 por cento, caíram nos anos recentes para uma média de cerca de 35 por cento", sublinhou o presidente da Reserva Federal. O que, combinado com a rápida subida dos preços dos títulos face aos lucros nos anos mas recentes, levou a uma quebra ainda mais acentuada dos rendimentos dos dividendos. Assim, o enfoque na avaliação da cotação das acções foi dramaticamente desviado em direcção aos lucros."Ao contrário dos dividendos em dinheiro, cujo valor é inequívoco, não há qualquer valor de lucros que seja inequivocamente 'correcto'".

"Não existe um grande mistério quanto ao efeito da atribuição de stock options nos lucros reportados aos accionistas"

Embora a grande parte dos lucros antes de impostos reflicta os recebimentos em dinheiro aos quais são subtraídos custos pagos, uma parte significativa resulta de mudanças de valorização de partes do balanço. Os valores de quase todos os activos baseiam-se na aptidão que os mesmos têm para produzir o rendimento futuro. Mas um julgamento apropriado do valor daquele activo depende fundamentalmente de uma previsão de eventos vindouros, que, pela sua natureza, são incertos."Éóbvio que a forma como uma empresa escolhe avaliar o potencial de rendimento futuro do balanço tem um impacto significativo nos resultados declarados hoje".

Mudança de comportamento em curso
"A incerteza dos lucros tem sido particularmente elevada nos últimos anos", asseverou Greenspan. Se bem que os avanços nas tecnologias de informação tenham criado novas oportunidades para empresas inovadoras, um ambiente de rápida mudança tecnológica é também caracterizado pela dificuldade de avaliar e projectar as resultantes oportunidades de lucro.

"Não é, então, de surpreender que, com o panorama a longo prazo cada vez mais amorfo, o nível e o recente crescimento de lucros a curto prazo tenham assumido um significado especial para a avaliação da cotação das acções, sujeitando os relatórios de lucros trimestrais a antecipação, rumores e 'desvios'", afirmou."Presumivelmente", prosseguiu, "tais tácticas tentam induzir os investidores a extrapolar tendências a curto prazo para uma visão a longo prazo favorável, que elevaria a cotação actual".

Para Greenspan, foi a crescente pressão da comunidade de investidores que levou muitas vezes os CEOs a procederem a expedientes contabilísticos "cujo único propósito é, discutivelmente, o de obscurecer potenciais resultados adversos". Mas o presidente da Reserva Federal acredita que está já em curso uma mudança de comportamento."A reputação empresarial está, felizmente, a renascer das cinzas do colapso da Enron como um valor económico significativo", afirmou. Uma maior disciplina de mercado, resultante dos últimos acontecimentos, "melhorou já indubitavelmente a corporate governance".

Mas, como referiu, "o Congresso está a dar claras indicações de que é necessário fazer mais". Greenspan mostrou-se esperançado de que quaisquer iniciativas legislativas e reguladoras venham a adequar ainda mais as práticas actuais ao modelo legal de governance "que tão bem serviu as gerações passadas". Um sucesso que resultaria, principalmente, de mudanças operadas nos incentivos dos quadros das empresas.

Mas, para Greenspan, há que ter cautela e não ver na intensificação reguladora a panaceia para os problemas actuais, "especialmente quando os rácios preço/lucro reflectem crescentemente a percepção do mercado sobre a qualidade da contabilidade". Como sublinhou, "ao longo dos anos a regulação provou ser só parcialmente bem sucedida em dissuadir os indivíduos de manipularem as regras da contabilidade".

Desmistificar as stock options
No entanto, Greenspan é da opinião que "algumas regras parecem chegar com atraso". Referindo-se às stock options, afirmou que, "quando os planos são correctamente construídos, a sua atribuição pode ser altamente eficaz para alinhar os incentivos dos gestores com os dos accionistas". Mas, infelizmente, a contabilização corrente das stock options criou "alguns efeitos perversos na qualidade da divulgação de contas das empresas que, discutivelmente, estão a complicar ainda mais a avaliação de lucros e, assim, a diminuir a eficácia de declarações de rendimentos enquanto suporte de uma boa corporate governance".

Mas, para Greenspan, "se os intervenientes no mercado foram realmente enganados, tal facto, em si, é surpreendente, pois não existe um grande mistério quanto ao efeito da atribuição de stock options nos lucros reportados aos accionistas". Prosseguindo, afirmou que "as regras de contabilidade exigem que se declarem suficientes dados sobre a atribuição de stock options em notas de rodapé nas declarações financeiras, de forma a permitir aos analistas calcularem estimativas razoáveis do seu efeito nos lucros".

Os críticos da contabilização das opções como despesa argumentam que este modelo torna mais difícil a angariação de capital."Mas a contabilização das opções é uma mera transacção de registo contabilístico", contrapôs Greenspan."Nada é verdadeiramente alterado nas operações reais ou no cash flow da empresa. Se os investidores forem dissuadidos por um menor valor de lucros declarados, resultante da contabilização das opções como despesa, tal significa apenas que estavam menos informados do que deveriam estar. O capital empregue com base na falta de informação é provavelmente capital mal utilizado".

Corporate governance deve ser para todos
Uma das figuras que tem sido bastante criticada em toda a onda de escândalos empresariais tem sido o CEO. Greenspan acredita que "o actual paradigma do CEO dominante, com todos os seus defeitos, continuará provavelmente a ser encarado como a forma mais viável de corporate governance para o mundo actual". Conforme acrescentou, "a única alternativa credível é que os grandes accionistas, principalmente institucionais, exerçam um controlo muito maior sobre questões empresariais do que parecem estar dispostos a fazer". Para Greenspan, CEOs que decidam governar de acordo com o interesse dos accionistas podem induzir, pelo seu exemplo e supervisão, colegas e auditores externos a comportarem-se da forma correcta.

À laia de conclusão, Greenspan salientou que "uma economia de mercado exige uma estrutura de regras formais". Mas, alertou, "as regras não podem substituir o carácter". Em todas as transacções, "confiamos na palavra daqueles com quem fazemos negócio. Se não o pudéssemos fazer, os bens e serviços não poderiam ser transaccionados eficientemente", sublinhou.

Frisando que os seres humanos são como são - "alguns com padrões invejáveis e outros que procuram constantemente cortar caminho" -, Greenspan declarou que "só pode haver um conjunto de regras para a corporate governance" e que aquele conjunto deve aplicar-se a todos."Formular regras que proporcionem uma combinação correcta de incentivos e penalidades reguladoras, e baseadas no mercado, nunca foi fácil. E suspeito que, mesmo depois de ultrapassarmos o colapso da Enron, formular e actualizar tais regras continuará a ser um desafio", concluiu Greenspan.

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