O Corporate Governance
A discussão que o tema governo das sociedades tem gerado encontra justificação na busca da relação óptima entre as estruturas de gestão das empresas e a maximização do valor das empresas.
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Manuel Alves Monteiro Ex-Presidente da Euronext Lisbon Presidente da Direcção do IPCG – Instituto Português de Corporate Governance |
O Corporate Governance
A chamada corporate governance deve a sua génese à discussão da relação entre a propriedade e o controlo das empresas.POR MANUEL ALVES MONTEIRO - Artigo publicado originalmente no Anuário do Economista, da Ordem dos Economistas.
Na década de 1930, uma obra clássica intitulada “The Modern Corporation and Private Property”, de Adolf A. Berle e Gardiner C. Means, tornou-se referência para o desenvolvimento, tanto da teoria económica e jurídica, quanto de políticas e medidas tomadas pelo Governo dos Estados Unidos da América, nomeadamente o Securities Act de 1933 e o Securities Exchange Act de 1934.
Aquela obra enfatiza os aspectos relacionais da propriedade e do controlo, num cenário de transformação das pequenas empresas privadas e familiares, cuja propriedade era tida como individual, em grandes organizações, do tipo sociedade anónima, cuja propriedade é plural, dispersa e total ou parcialmente desligada do controlo.
A separação entre a propriedade e o controlo das sociedades anónimas, documentada por Berle e Means, constitui-se na essência fundamental dos problemas a que o fenómeno organizacional, actualmente divulgado sob a designação de Corporate Governance, ou governo das sociedades (numa terminologia nacional), procura responder.
Tal separação - entre a propriedade e o controlo - é potenciadora de situações nas quais os interesses dos proprietários e dos executivos podem divergir. Ora, a realidade diz-nos que, não poucas vezes, tal divergência ocorre (sendo de registar que tal divergência, por vezes, origina lesão grave dos interesses das empresas ou dos accionistas).É neste contexto que assume especial importância a acção dos administradores, sendo fundamental definir correctamente os seus limites, os seus papéis e as suas responsabilidades.
Actualmente, o problema abrange outras situações que não somente as derivadas da relação entre os accionistas e os gestores, uma vez que, em muitas sociedades, a questão coloca-se entre os pequenos investidores e os grandes accionistas que, pela posição que detêm no capital das sociedades, controlam os gestores.
Contudo, embora a expressão governo das sociedades possa ser definida de múltiplas formas, envolve, genericamente, o conjunto de mecanismos através dos quais se materializa a gestão e o controlo das sociedades de capital aberto, onde se incluem instrumentos que permitem avaliar e responsabilizar os administradores da sociedade pela sua gestão e performance.
Este conjunto de mecanismos tendentes a harmonizar a relação entre gestores e accionistas decorre da resolução do problema de agência1. Falar em governo das sociedades significa discutir e identificar os mecanismos tendentes à minimização da assimetria de informação existente entre as sociedades e os diversos agentes envolvidos, com destaque para os accionistas, os credores, os fornecedores e os empregados. A maior transparência proposta pelo governo das sociedades tenderá a induzir a redução do custo de capital, uma vez que os credores têm maior credibilidade nos dados da empresa e os accionistas estarão dispostos a investir, se acreditarem que o grupo controlador ou gestor não poderá manipular as informações em proveito próprio. Assim o indica um amplo inquérito concretizado pela McKinze em 2002, cobrindo 31 países de todos os continentes, pelo qual, uma significativa maioria dos investidores respondeu que estaria disposto a pagar um prémio (ou seja, aceitar pagar um preço mais elevado e exigir um menor retorno) pela boa governação das empresas.
Resulta, assim, claro que o conceito está intimamente vinculado à estrutura de propriedade, às características do sistema financeiro, à profundidade e grau de desenvolvimento do mercado de capitais e ao contexto legal e regulamentar de cada economia.
Principais sistemas de governo das sociedades
Tendo em conta estas realidades existem genericamente dois sistemas de governo das sociedades: o sistema continental, também designado por sistema de controlo interno, predominante na Alemanha e no Japão, e abrangendo muitos dos países da Europa continental e o sistema anglo-saxónico, ou de controlo externo, presente nos EUA e no Reino Unido.
No segundo destes sistemas a propriedade dispersa predomina, enquanto que, no modelo continental, a propriedade é muito concentrada, com outras empresas e famílias a deterem parcelas expressivas do capital das empresas cotadas. Esta questão está, ainda, intimamente relacionada com o estádio de evolução dos respectivos mercados de capitais, caracterizando-se as bolsas dos países anglo-saxónicos por uma grande dimensão e um elevado grau de liquidez quando comparadas às congéneres da Europa continental, tradicionalmente menos líquidas. Aliás, este diferencial não é mais do que uma outra forma de expressar o genérico diferencial de dispersão de capital que se regista nestes dois espaços/sistemas.
O ambiente institucional relativo à protecção dos accionistas e credores é igualmente relevante, sendo que os EUA e o Reino Unido possuem um sistema legal que garante protecção acrescida aos accionistas face aos credores, enquanto que, no caso alemão, por exemplo, a protecção legal aos credores é superior à dos accionistas.
Neste sentido, o grande desafio que se coloca no modelo anglo-saxónico é o de estabelecer mecanismos e instrumentos de controlo dos gestores face aos accionistas, ao passo que, no modelo continental, a principal questão reside na protecção dos pequenos investidores face aos accionistas que, pela sua dimensão, controlam ou influenciam a equipa de gestão da empresa.
Em termos de instrumentos utilizados por cada um dos modelos com vista à obtenção de uma estrutura de governo óptimo, as principais diferenças residem na configuração dos órgãos de administração e no papel do mercado de controlo de empresas.
Relativamente aos órgãos de administração, a estrutura típica nas empresas americanas ou inglesas assenta num conselho de administração, composto por dois tipos de administradores: administradores internos ou executivos e administradores externos, independentes e não executivos, aos quais cabe tomar decisões relevantes para a empresa e o seu futuro, bem assim como, controlar e avaliar a actividade dos gestores executivos.
Outra característica diferenciadora deste modelo relaciona-se com a existência de um conjunto de comités, cujo funcionamento é independente dos administradores executivos, com funções específicas, como sejam, o comité de auditoria (cujo objectivo é o de assegurar que a informação prestada ao mercado é devidamente auditada), o comité de nomeações ou o comité de corporate governance.
Por outro lado, o mercado de capitais exerce um papel importante nas economias onde prevalece este modelo, na medida em que os investidores de longo prazo exercem um controlo activo sobre o desempenho dos gestores, assumindo um papel relevante nas assembleias gerais, contribuindo, cada vez mais, para a eleição de um maior número de conselheiros independentes.
O modelo continental apresenta como estruturas típicas de órgãos de administração uma direcção, designada por um conselho geral ou no contrato de sociedade, ou um conselho de administração. Nos casos em que há conselho de administração, muito frequentemente existe uma comissão executiva originária da composição do conselho de administração.
O conselho geral, no primeiro caso, e o conselho de administração, no segundo, têm como principais funções assegurar que as decisões tomadas, quer pelos directores, quer pela comissão executiva, normalmente representantes dos accionistas de referência da sociedade, respeitem os interesses de todos os accionistas ou investidores.
Em síntese, dir-se-ia que os dois diferentes modelos de estruturas de gestão existentes mais comummente usados visam adequar-se às realidades de cada economia, em termos de dispersão de capital das sociedades, de desenvolvimento do mercado de capitais e ambiente legal e regulamentar, de forma a maximizar o valor aplicado pelos diferentes investidores, sejam eles particulares ou institucionais.
É neste contexto que diversas entidades nacionais e supranacionais com poderes ao nível legislativo e regulamentar têm vindo a publicar os denominados “códigos de boas práticas”, com o objectivo de criar mecanismos de protecção dos interesses dos investidores, bem como, de facilitar o controlo, por parte do mercado, dos órgãos de administração.
A adopção de mecanismos de estímulo ao exercício do direito de voto e à representação accionista, a explicitação de informação sobre a remuneração dos membros dos órgãos de gestão ou a criação de um comité de auditoria são exemplos das muitas matérias que têm sido tratadas na doutrina e nos fóruns de discussão profissional e, cada vez mais, vertidas para os quadros legais e regulamentares das economias mais evoluídas, respondendo assim os mercados à crescente necessidade de adopção de comportamentos de transparência e de rigor.
Conclusão
A discussão que o tema governo das sociedades tem gerado, principalmente a partir do final da década de oitenta, nos meios académicos, societários e políticos, encontra justificação na busca da relação óptima entre as estruturas de gestão das empresas e a maximização do valor das empresas, assumindo-se que os gestores profissionais têm como principal responsabilidade acrescentar valor para o accionista. Citando Rappaport (1998), “nos próximos anos a criação de valor para o accionista tornar-se-á provavelmente o padrão global para medir o desempenho das empresas.”
Assim se encontrem e estabeleçam mecanismos que, não só permitam uma mensuração exacta desse desempenho, como induzam a que comportamentos desviantes sejam efectivamente penalizados, ao passo que comportamentos conformes com esse desiderato sejam efectivamente premiados.
1 A teoria da agência resulta da aplicação de teorias económicas no âmbito dos estudos organizacionais, referindo ao relacionamento existente entre a agência, ou contrato, no qual uma ou mais pessoas (o principal) contrata uma outra pessoa (o agente) para executar algum serviço que envolva a delegação de tomada de decisão e autoridade para o agente. O problema reside na circunstância de, por vezes, os agentes decidirem de modo favorável aos seus próprios interesses, mas contrário aos interesses dos principais, originando os chamados custos de agência.
Artigo publicado originalmente no Anuário do Economista, da Ordem dos Economistas. |