Artigos e Estudos sobre Corporate Governance

Como caucionar a responsabilidade civil dos administradores?

A reforma do CSC introduziu alterações relativas à caução a prestar pelos administradores das sociedades anónimas. Em teoria, os princípios subjacentes às alterações estão correctos e são de louvar. Na prática, resultam em dificuldades para as sociedades e para os administradores.

Paulo BandeiraPaulo BandeiraComo caucionar a responsabilidade civil dos administradores? - POR PAULO BANDEIRA

Uma das matérias inicialmente menos discutidas na reforma do Código das Sociedades Comerciais (“CSC”) operacionalizada pelo Decreto-Lei n.º 76-A/2006, de 29 de Março, foi a alteração introduzida na redacção do artigo 396º do CSC relativa à caução a prestar pelos administradores das sociedades anónimas.

Rezava a anterior redacção do aludido artigo do CSC que a responsabilidade de cada administrador devia ser caucionada por alguma das formas admitidas por lei, na importância que for fixada pelo contrato de sociedade, mas não inferior a 5000 euros. Mais se acrescentava que a caução poderia ser substituída por um contrato de seguro, a favor da sociedade e que, excepto nas sociedades com subscrição pública, a caução poderia ser dispensada por deliberação da assembleia geral que eleja o conselho de administração.

Por último, acrescenta ainda o n.º 4 do artigo (cuja redacção foi a única neste artigo a não sofrer alterações) que a responsabilidade deve ser caucionada nos 30 dias seguintes à eleição e assim se deverá manter até ao fim do ano civil seguinte àquele em que o administrador cesse as suas funções, sob pena de cessação imediata de funções.

As sociedades anónimas em Portugal e os seus administradores viviam relativamente felizes com a norma tal qual amesma se apresentava, porquanto, em regra, dispensavam os administradores de prestar caução e, tendencialmente as grandes sociedades anónimas, recorriam subsidiariamente à figura do seguro de responsabilidade civil dos administradores (na vertente internacionalmente difundida do “directors&officers insurance” e, em regra, por valores seguros substancialmente superiores ao definido legalmente) sempre que consideravam pertinente segurar os riscos inerentes à actuação dos administradores. De tal forma se evitava o risco inerente à pena de “cessação imediata de funções” em caso de não prestação de caução e se segurava a responsabilidade dos administradores nas sociedades que isso considerassem pertinente.

O regime tal qual se apresentava não era, todavia, isento de crítica. Desde logo, o montante mínimo de caução era ridiculamente baixo para o tipo de

danos que a actuação de um administrador pode causar. Por outro lado, a caução era prestada à sociedade, mas os eventuais titulares do direito à indemnização são, na realidade, vários (accionistas, credores, trabalhadores e outros terceiros). Por último, a caução poderia ser dispensada em sociedades em que, pela sua dimensão, poderiam ser milhares os potenciais titulares do direito à indemnização. Tudo isto justificava um impulso reformador por parte do legislador.

A primeira alteração verificada consiste na actualização dos valores da caução sendo esta agora no valor mínimo de 250.000 euros para as sociedades cotadas e para as grandes sociedades anónimas (aquelas que cumpram os critérios da alínea a) do n.º 2 do artigo 413.º do CSC) e no valor de 50.000 euros para as restantes sociedades.

Em segundo, estabeleceu-se que, no que às sociedades cotadas e grandes sociedades anónimas respeita, a prestação de caução não poderá ser dispensada por deliberação da assembleia geral. Por último, clarificou-se, e bem, que a caução pode ser substituída por um contrato de seguro a favor dos “titulares de indemnizações”.

Dificuldades à vista

Do ponto de vista teórico, os princípios subjacentes às alterações estão absolutamente correctos e são de louvar. Do ponto de vista prático, ou seja, na perspectiva da aplicabilidade do actual regime legal, as medidas tal como consagradas são indutoras de inusitadas dificuldades para as sociedades comerciais e para os administradores e carecem de adequada reformulação sob pena de inultrapassável inaplicabilidade.

Porquê? Antes de mais deverá ter-se presente que a simples previsão de que o contrato de seguro que substitui a caução deve ser realizado a favor dos “titulares de indemnizações” constitui uma mudança de paradigma. Quer-se com isto dizer que também a caução passa agora a ser prestada a favor dos “titulares de indemnizações” em detrimento de ser prestada apenas a favor da sociedade.

A alteração, sendo correcta nos princípios, acarreta em si mesma a contradição de tornar impossível a prestação de caução. Senão vejamos.

A prestação de caução nas sociedades anónimas poderá realizar-se, por exemplo, mediante a entrega pelo administrador de dinheiro ou valores ou de uma garantia bancária. Ora, de acordo com o actual regime legal, a quem deverá o administrador entregar os 50.000 eurosde caução? À sociedade? Aos accionistas? Aos trabalhadores? Bem... Em rigor qualquer um destes intervenientes pode exigir a prestação da caução, porque todos eles podem, em teoria, ser “titulares de indemnizações”. Acresce a isto que muito dificilmente um banco aceitará emitir uma garantia bancária a favor dos “titulares de indemnizações”, porquanto tal equivaleráà prestação de uma garantia a favor de“incertos”.

Neste contexto, nada mais restará aos administradores como forma de prestação de caução que a contratação de um seguro. Os seguros de responsabilidade civil podem, sem dificuldade, ser emitidos a favordos “titularesde indemnizações”.Em todo o caso, sempre se deverá dizer que a expressão legal é infeliz, porquanto à data da contratação do seguro não haverá “titulares de indemnizações” (pois não haverá ainda dano), mas apenas potenciais titulares de direito a indemnizações.

O problema prático que hoje se verifica é que os seguros disponibilizados no mercado português não estão formatados para serem verdadeiros substitutos da caução por duas razões imediatas.

A primeira razão deriva do facto de não existir um seguro destinado a ser subscrito pelo administrador, sendo todos os produtos existentes destinados às sociedades. A segunda razão, e mais importante, prende-se com o facto de todos os seguros do mercado apresentarem um extenso rol de exclusões em caso de verificação de dano, encontrando-se, desde logo, excluídos os danos causados de forma dolosa pelos administradores.

Embora se possam considerar atendíveis as motivações das seguradoras ao prever tais exclusões, a verdade é que na prestação de caução não há lugar à imposição de exclusões por parte dos administradores.

Deste modo, deverá concluir-se que os actuais produtos disponíveis no mercado não são susceptíveis de “substituir” a caução nos seus exactos termos, não podendo considerar-se a mesma como prestada quando um seguro D&O é subscrito pela sociedade.

Não sendo a caução prestada no prazo de 30 dias após a nomeação, dispõe o CSC que haverá “cessação imediata de funções”, ou seja, caducidade do mandato dos administradores.

Que solução?

A resolução deste problema depende da intervenção de duas entidades. Antes de mais, deverá o legislador voltar a debruçar-se sobre o artigo 396.º do CSC e restaurar um mecanismo operacional de prestação de caução. Para o efeito, sugere-se que não obstante a caução poder ser prestada a favor

dos “titulares de indemnizações” (já agora aproveite-se e corrija-se esta expressão legal) a mesma possa, em alternativa, ser prestada à sociedade anónima mas para benefício de todos os “potenciais titulares de direito a indemnizações”, caso em que actuará aquela como mera depositária da mesma.

Em segundo lugar, é fundamental que os seguradores adeqúem a respectiva oferta em sede seguros de responsabilidade civil dos administradores, criando um novo produto destinado a administradores sobre o qual não recaiam exclusões que incapacitem a função substitutiva do seguro face à caução, podendo os actuais seguros D&O manter-se nos actuais moldes como seguros de natureza complementar relativamente a este novo produto.

Por último, parece-nos importante que seja autonomizada nas atribuições legais dos órgãos de fiscalização da sociedade a verificação e validação no respectivo relatório anual da prestaçãode caução por parte de todos os administradores em exercício.

Artigo publicado originalmente no Jornal de Negócios, na edição de 2 de Abril de 2007. Todos os direitos reservados.


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