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As propostas de alteração da CMVM

Conheça a opinião de Paulo bandeira sobre as propostas da CMVM para alteração dos modelos de governação das sociedades anónimas, que estiveram em discussão até 13 de Fevereiro.

As propostas da CMVM para alteração dos modelos de governação das sociedades anónimas - POR PAULO BANDEIRA

As Propostas CMVM© iStockPhoto

1. Como é do conhecimento público, a Comissão do Mercado de Valores Mobiliários (doravante, “CMVM”) tem em consulta pública até ao final do dia de hoje, 13 de Fevereiro, um relevante conjunto de propostas visando a alteração dos actuais modelos de governação das sociedades anónimas, bem como a proposta de articulado modificativo do texto do Código das Sociedades Comerciais (doravante, “CSC”).

Antes de mais, importa salientar a relevância destas propostas e saudar o momento em que as mesmas são apresentadas. O CSC foi aprovado em 1986 e, vinte anos volvidos, nunca foi objecto de uma profunda reavaliação e da reestruturação de que efectivamente carece. Nestes vinte anos a evolução da economia, dos instrumentos mercantis à disposição das empresas, dos modelos de estruturação societária, da organização e formas de funcionamento das sociedades portuguesas, aconselham um repensar cuidado, mas célere, não só dos modelos de governação societária, como também de múltiplos outros institutos jurídicos consagrados no CSC que se encontram totalmente desajustados da realidade das sociedades comerciais, quer estas se organizem sob a forma de sociedade por quotas ou anónimas.

Parece-nos, por isso, fundamental que a reforma dos modelos de governação ora proposta pela CMVM, sob a égide dos Ministérios da Justiça e das Finanças, seja enquadrada num projecto de reestruturação global do CSC em ordem a que o mesmo esteja, tanto quanto possível, adaptado à realidade das sociedades em Portugal no momento presente e habilite essas sociedades a dispor de adequados e modernos instrumentos jurídicos que facilitem a prossecução do seu objectivo primeiro que é a produção de riqueza e de valor para os seus sócios ou accionistas. Tanto mais que o Governo português anunciou já importantes revisões nos processos de constituição, fusão e dissolução de sociedades. Importava, por isso, que, a benefício da coerência e da economia de processos, todas as revisões fossem temporalmente coincidentes.

2. Feita a observação preliminar, vejamos então, o que de mais relevante propõe a CMVM que se altere no CSC.

Não obstante a proposta de alteração apresentada pela CMVM abordar outros temas como sejam a responsabilidade civil dos administradores, a sociedade da informação no âmbito do governo das sociedades anónimas e o regime privado do estado enquanto accionista (discussão também muito actual e relativa aos direitos especiais do Estado nas sociedades de capitais privados, vulgo “golden shares”), o âmago das propostas apresentadas centra-se nos modelos de governação das sociedades anónimas.

Como é do conhecimento geral, hoje em dia as sociedades anónimas em Portugal podem estruturar-se segundo um de dois modelos: (i) modelo monista, composto de conselho de administração e conselho fiscal ou fiscal único, ou (ii) modelo dualista, composto de conselho geral, direcção e revisor oficial de contas. Em qualquer um destes modelos, caso a sociedade tenha um capital social inferior a 200.000 euros, poderão os accionistas optar por ter um administrador ou director único em substituição do órgão colegial de administração.

As características económico-sociais do nosso país e do tecido empresarial que o compõe dão causa a que uma percentagem muito elevada das sociedades anónimas em Portugal sejam pequenas e médias empresas, o que favorece a adopção do modelo monista. A escolha deste modelo tem ainda a particularidade de cada vez maior número de sociedades optar por suprimir o conselho fiscal, adoptando em sua substituição a figura do fiscal único. Tal deve-se, sobretudo, a duas ordens de razão: (i) à redução prática das funções do conselho fiscal à mera revisão das contas anuais e (ii) a motivos de ordem económica, porquanto será mais dispendioso manter uma estrutura colegial que optar pela figura do fiscal único.

Por outro lado, o modelo dualista nunca logrou obter grande adesão em Portugal por várias razões de ordem prática. Em primeiro lugar, o termo “Director” aplicado a quem administra a sociedade nunca gerou grande empatia entre os empresários, pelo facto de o mesmo termo ser correntemente utilizado na hierarquia das empresas para administrativos de topo, mas sem funções de gestão. Em segundo lugar, o facto de o CSC exigir que todos os membros do conselho geral sejam accionistas inviabiliza a adopção do modelo por parte das pequenas e médias empresas, em que a dispersão de capital é muito baixa e, poderá dizer-se mesmo, pouco frequente. Por último, em terceiro lugar, o facto de o número de directores da empresa ser limitado a um máximo de cinco torna o modelo inadequado para as grandes sociedades anónimas (v.g., as sociedades abertas com o capital admitido à cotação) em que a complexidade da gestão implica a existência de um maior número de membros executivos. Paradigmático é o facto de várias grandes sociedades anónimas que em momentos distintos da sua existência adoptaram o modelo dualista se terem visto forçadas a alterar a sua opção e a readoptar o modelo monista.

Há muito identificados os problemas, importa adoptar medidas que permitam não só reabilitar a operacionalidade dos modelos existentes, como também permitir à multiplicidade das sociedades anónimas portuguesas a possibilidade e flexibilidade de optarem pelo modelo de governação que, pelas suas características, melhor sirva os interesses de cada organização. Noutra vertente, teve ainda a CMVM como principal preocupação a reabilitação da actividade de fiscalização dos administradores executivos, reforçando a componente da independência subjacente aos membros dos órgãos de fiscalização.

Assim, vem a CMVM propor que as sociedades anónimas possam escolher entre um dos seguintes três modelos: (i) modelo latino, composto de conselho de administração e conselho fiscal; (ii) modelo anglo-saxónico, composto de conselho de administração (dentro do qual se autonomizam uma comissão de auditoria) e revisor oficial de contas; (iii) modelo dualista, composto de conselho geral e de supervisão, conselho de administração executivo e revisor oficial de contas.

De realçar que as sociedades com o capital social inferior a 200.000 euros continuarão a ter a possibilidade de adoptar os modelos latino ou dualista substituindo o conselho de administração por um administrador único.

3. No que ao modelo latino diz respeito, a principal preocupação veiculada pela CMVM foi a de permitir a reabilitação do conselho fiscal (ou de fiscalização, nos termos da efectiva proposta de alteração do articulado do CSC) enquanto figura com competência e deveres de fiscalização e avaliação do desempenho dos membros executivos do conselho de administração e não já como mero órgão de revisão das contas do exercício. Para o efeito, dando cumprimento ao disposto na 8.ª Directiva sobre direito das sociedades, a CMVM propõe que para sociedades emitentes de valores mobiliários admitidos à negociação em mercado regulamentado e para sociedades anónimas com um capital social superior a valor a fixar por portaria conjunta do Ministro das Finanças e do Ministro da Justiça (o qual se espera seja suficientemente elevado para não impor sacrifícios desnecessários às pequenas e médias sociedades anónimas) haja uma separação entre a função de fiscalização do desempenho do órgão de administração e a função de revisão de contas, pelo que, nestes casos, o modelo latino imporá a existência de um conselho de administração, de um conselho fiscal (ou de fiscalização) e de um revisor oficial de contas.

Realce-se, todavia, que este modelo latino reforçado, obrigatório para as sociedades anónimas atrás identificadas, será facultativo e livremente adoptável por todas as restantes sociedades que o queiram fazer.

De referir, ainda, que no que tange às sociedades emitentes de acções admitidas à negociação em mercado regulamentado, o conselho de fiscalização deverá ser composto por uma maioria de membros “independentes”, ou seja, que não estejam associados a qualquer grupo de interesses específicos na sociedade, designadamente em virtude de ser titular ou actuar em nome ou por conta de accionistas detentores de 5% ou mais do capital social.

4. Por seu turno, a consagração do modelo anglo-saxónico corresponde à conceptualização de uma prática já adoptada pelo mercado, mais concretamente por muitas sociedades abertas em Portugal. Na verdade, grande parte das sociedades emitentes com acções admitidas à cotação em mercado regulamentado têm a sua organização societária baseada no modelo monista, sendo o conselho de administração composto por administradores executivos e não executivos e cabendo a estes últimos o papel de desafiadores da gestão e de fiscalizadores da acção dos membros executivos.

Neste âmbito foi, sobretudo, preocupação da CMVM dar corpo a um conjunto de competências e deveres dos membros não executivos. Assim, estruturou este modelo com um conselho de administração e um revisor oficial de contas, sendo que o conselho de administração será forçosamente composto por membros executivos e por uma comissão de auditoria (com poderes de fiscalização da comissão executiva). De realçar que sendo os membros da comissão de auditoria membros de pleno direito do conselho de administração, estamos em crer que manterão neste órgão o direito à participação e deliberação nas reuniões, participando, dessa forma, na definição da política de gestão a ser seguida na sociedade. Não deveriam, todavia, poder participar nas deliberações referentes à gestão corrente da sociedade, deliberações que deverão caber aos membros executivos. Aguardamos, porém, alguma clarificação sobre esta matéria.

Os membros da comissão de auditoria são eleitos e destituídos em assembleia geral da sociedade, todavia, ao invés dos membros executivos, não poderá a assembleia geral destituí-los “ad nutum”, ou seja, sem ocorrência de factos que consubstanciem justa causa. A solução proposta pela CMVM, equivalente à consagrada para o conselho de fiscalização, parece-nos desajustada à natureza e competência mistas da comissão de auditoria. Na verdade, sendo certo que a principal função dos membros da comissão de auditoria é fiscalizar os membros executivos do conselho de administração, nem por isso deixam de participar nas deliberações daquele órgão e, assim, ter um papel activo na definição da estratégia da sociedade. Deveria o seu trabalho também poder ser julgado pelos accionistas da sociedade nessa vertente, o que a proibição da destituição sem justa causa desde logo prejudica.

Por outro lado, entendeu a CMVM não alterar o fundamental do regime da responsabilidade solidária de todos os membros do conselho de administração por actos praticados por algum deles. Optou, ao invés, por propor a consagração, embora mitigada, da “business judgement rule”, admitindo que a responsabilidade dos administradores possa ser excluída se provarem que actuaram em “termos informados, livre de qualquer interesse pessoal e segundo critérios de racionalidade empresarial”.

A CMVM não quis neste ponto ir mais longe, mas poderia e, provavelmente, deveria tê-lo feito no que aos administradores não executivos respeita. Deveria, assim, vingar o princípio de que a funções e competências diferentes correspondem responsabilidades de diferente grau. Sujeitar ao mesmo nível de responsabilidade por actos praticados pela sociedade os administradores executivos e não executivos é desincentivar a assunção deste último cargo. Parece-nos que este é um dos aspectos do regime legal que importa rever rapidamente.

Cumpre referir, ainda, que no caso das sociedades emitentes de acções admitidas à negociação em mercado regulamentado a comissão de auditoria deve ser composta por uma maioria de membros “independentes”, ou seja, que não estejam associados a qualquer grupo de interesses específicos na sociedade, designadamente em virtude de ser titular ou actuar em nome ou por conta de accionistas detentores de 5% ou mais do capital social, e os membros da comissão de auditoria não poderão ser reeleitos mais de duas vezes.

5. O modelo dualista é aquele que mais profundas alterações deverá sofrer, uma vez que, como atrás já ficou dito, importa reformulá-lo quase por completo em ordem a torná-lo adequado e atractivo à organização das sociedades anónimas em Portugal.

As alterações são bastantes e importa conhecê-las em pormenor.
Desde logo, são alteradas as denominações dos órgãos sociais. A Direcção deverá passar a designar-se por “Conselho de Administração Executivo”, adoptando os actuais directores a nomenclatura de “Administradores”, pelo que se libertará este modelo de um estigma que muito contribuiu para a sua fraca adopção.

Também o Conselho Geral deverá, segundo a proposta de articulado, passar a “Conselho Geral e de Supervisão”. Não logramos concordar com esta última alteração, parecendo-nos mais curial que as designações “Geral” e “de Supervisão” possam ser adoptadas em alternativa mediante livre escolha da sociedade.

A segunda grande alteração que se propõe consiste na eliminação da limitação do número de membros do Conselho Geral e da eliminação da exigência de que tais membros sejam accionistas da sociedade. Tal alteração, se aprovada, permitiráà sociedade a adequação do órgão à sua situação concreta e propiciará a integração naquele órgão de independentes, propondo-se ainda a proibição de inclusão de membros que exerçam funções em empresa concorrente (tal como similarmente proposto para o conselho fiscal no sistema latino).

A terceira grande alteração prende-se com a eliminação do número máximo de administradores (que constituía outro entrave à adopção deste modelo), podendo os administradores ser eleitos pelo Conselho Geral ou, caso os estatutos da sociedade assim o prevejam, pela própria Assembleia Geral. A alteração visa acomodar os dois tipos de modelos dualistas preconizados na Europa, o alemão em que é o Conselho Geral que nomeia os administradores e o holandês em que os administradores são eleitos pela Assembleia Geral.

O único reparo que se faz é que, caso nos estatutos da sociedade não sejam atribuídos ao Conselho Geral poderes de concessão de prévio consentimento para a prática de determinadas categorias de actos por parte dos administradores, não haverá diferenças materiais entre o modelo conselho de administração / conselho fiscal e este modelo conselho geral / conselho de administração.

6. Em jeito de conclusão, reafirme-se que a flexibilidade das soluções propostas permitiráàs empresas portuguesas estruturarem-se da forma que melhor responder às respectivas necessidades e interesses e permite a Portugal posicionar-se como um dos países com modelos de governação societária mais avançados a nível mundial.

Artigo publicado originalmente no Jornal de Negócios, na edição de 13 de Fevereiro de 2006. Todos os direitos reservados.


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